Hoje, 4 de Outubro de 2015, passam precisamente 23 anos depois da assinatura do acordo de Roma. 4 de Outubro de 1992 é o dia em que foi assinado, em Roma, o Acordo Geral de Paz, que pôs termo a uma guerra devastadora, cruel, de irmãos contra irmãos, destruindo estruturas e bens que atingiram o cerne do desenvolvimento do nosso país e deixaram marcas indeléveis no tecido económico, social e humano.
Uma guerra, recorde-se, que começou por ser desencadeada a partir da então Rodésia de Ian Smith, quando este regime ilegal se sentiu ameaçado pela recente independência de Moçambique. O seu comando foi depois transferido para a África do Sul quando se começaram a desenhar no horizonte próximo os acordos de Lancaster House que puseram fim à dominação de Ian Smith e abriram portas a eleições que terminaram com a vitória de Robert Mugabe.
A guerra contra Moçambique foi então comandada e dirigida pela África do Sul, como estratégia de defesa do apartheid. Moçambique constituía um mau exemplo que era necessário submeter, não conquistando-o, mas ajoelhando-o, ou tudo fazendo para colocar em Maputo um governo de subserviência aos desígnios racistas.
Na guerra dos 16 anos, dita de “luta pela democracia”, a população sofreu na carne todos os atropelos à sua dignidade. Saída do domínio colonial, via-se impossibiltada de gozar da sua liberdade. Nem as estradas, nem as pontes, nem os hospitais, nem as escolas, eram lugares de segurança. As pontes de diálogo cuja construção se ia tentando, desabavam todos os dias no terreno da maior das crueldades.
Até que se chegou, entretanto, à certeza de que a guerra a nada conduziria, só restava o diálogo persistente, humilde, tenaz, sem desfalecer. Empenharam-se nesse esforço, também, as organizações religiosas, com destaque para a Igreja Católica, que, com frequência, trocou impressões com o Presidente Chissano, a encorajar-lhe o trabalho em prol das populações cansadas da guerra. Contactaram, também, com Afonso Dhlakama. Também ele, ciente de que a guerra o não conduziria ao poder, mostrou-se favorável à reconciliação nacional e recebeu bem o apelo dos bispos.
Echegou-se a Roma numa altura em que a Frelimo, força sempre nacionalista e libertadora do colonialismo, se havia desmarxisado com a renúncia à tendência comunista que lhe vinha, oficialmente, do III Congresso. Em 1990 inscreve na Constituição o pluralismo político. Por força da dinâmica interior, do repensamento sistemático e contínuo, com um ambiente exterior contrário à prática política do marxismo-leninismo (o Muro de Berlim caíra em Novembro de 1989).
Nunca mais houve guerra, até à altura em que Afonso Dhlakama se entrincheirou em Santundjira e ordenou os seus homens a emboscarem viaturas no troço entre Muxungué e rio Suave, sempre com exigências e sempre com ameaças belicistas, até ser escorraçado dali para a chamada “ parte incerta”.
Afonso Dhlakama viria a sair da “parte incerta” com a assinatura do Acordo de Cessação de Hostilidades Militares, em Setembro do ano passado, e depois disputou as eleições de Outubro de 2014, que as perdeu. A partir daqui começou uma nova vaga de arruaça e ameaça de querer tomar o poder à forca, desrespeitando todos os ditames de um Estado de Direito. Desrespeitando a Constituição da República aprovada por unanimidade, isto é, contando com os votos do partido que ele próprio dirige.
Desrespeitou o Estado de Direito que tem como missão criar as condições precisamente para que não exista conflitos, não exista confusão. É que fora do Direito, instala-se o reino do salve-se quem poder, da iniciativa individual da “liberdade” libertina e da libertinagem que acha que cada um qual deve poder fazer aquilo que muito bem entender sem se preocupar com a agressão que pode causar nos outros. Não se têm como premissa maior que a minha liberdade para ser defendida, termina onde começa a liberdade dos outros e que a lei ou o Estado de Direito é um conjunto de condições que permite a todos os moçambicanos serem o que são, desenvolverem-se de acordo com as suas apetências e convicções, contando que não se ataquem uns aos outros. Que para eu ser livre, também os outros têm que o ser. E é só no Estado de Direito com organização adequada e estruturas compatíveis se pode garantir o desenvolvimento humano.
E Dhlakama criou toda esta confusão, toda esta tensão político-militar, por causa apenas das suas ambições pessoais e umbilicais. Devido ao facto de olhar apenas para o seu umbigo e não para o povo. Ao enveredar pelo caminho da ameaça e da arruaça e recusar-se a dialogar, Dhlakama agrediu a reconciliação nacional. Entendeu como o dissemos antes, que podia estar acima da lei e fazer tudo o que lhe apetecesse. Confundiu-se.
É que reconciliação não significa ausência de conflitos. Significa, isso sim, aprofundamento das nossas divergências, para serem resolvidas em clima de diálogo que rejeite todo e qualquer ambiente de belicismo armado, ameaças de belicismo armado.
Mesmo nesta actual situação em que vivemos, tenhamos coragem de saudar o 4 de Outubro, não como valor absoluto, em si mesmo. Saudemo-lo como porta aberta que nos permitiu entrar no edifício da paz que temos obrigação de reconstruir todos os dias, atentos, muito atentos ao circunstancialismo que nos rodeia. As circunstâncias podem mudar. Mas o espírito deve permanecer.