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O quase sniper da literatura

Por admin

 

Todo o mundo gaba-lhe a obra “O Regresso do Morto”, mas poucos lhe conhecem o rosto. Há quem lhe considere Sniper ou quase. Ele nega a pés juntos. E tem razão. Ainda assim, o seu último “trabalho” foi em terras angolanas.

Pegou numa arma-caneta telescópica, identificou o alvo, ajustou a mira, mediu a velocidade e a direcção do vento, susteve a respiração, levou o dedo ao gatilho e com precisão e paciência infinita… puuuu… Disparou. Arrancou o Prémio Literário Sonangol 2015. Depois, como sempre, arrumou o lap-top e desapareceu. Com recurso a satélite localizamo-lo andante na avenida 25 de Setembro e soubemos que está refugiado no bunker do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, onde lecciona há largos anos.

Que romance é este com que arrebatou o Prémio Literário Sonangol 2015?

A obra vencedora do Grande Prémio Sonangol de Literatura é um romance baseado numa estória que é narrada a partir da Estação da Vila de Marracune, antigamente conhecida como Estação de Vila Luísa de Marracuene. Procura resgatar a memória do lugar, do espaço e também do ponto de vista do actor principal. Poderíamos resumir a estória dizendo que o personagem vai a estação com o intuito de se enforcar.

Ôôô…! Outra vez a morte?!

Sim, sempre a morte. Naquela estação, a nossa personagem conheceu há muitos anos o seu primeiro amor. Foi encontro de um único dia. Um choque amoroso. Mas a namorada, se é que pudemos chamar assim, porque não houve uma relação prolongada no tempo, havia prometido que iria lhe escrever a responder a um rabisco que ele tinha feito sobre o joelho na altura da separação quando ela se preparava para apanhar o comboio de regresso a sua terra Bobole (Marracuene). Então, ao longo de todos estes anos, mais de 40, o nosso personagem frequenta a estação à busca dessa carta, e espera pelo homem do correio que era frequentador da estação onde recebia a mala postal para lhe entregar a sua carta, mas que nunca lhe chega.

E então?!

Ele decidiu por termo a vida. Mas tudo isso vai ser um pretexto para ele recuar no passado e, por via dele, revisitarmos aquela bela paisagem que é da Vila de Marracuene e com uma esplêndida vista sobre a bacia do Rio Incomati.

Porquê a morte está sempre presente nas suas obras? Temos “O Regresso do Morto”, “Palestra para um Morto” e agora, uma vez mais, a morte. A morte fascina-o?

(Risos) Não, não. Não no sentido magnético da coisa. Eu creio que a abordagem da morte que tivemos nas obras anteriores como esta é bastante ligeira no sentido de encara-la e dizer “ó morte, tu não és nada”. Sabemos que na perspectiva africana a morte não é propriamente o limite da vida, é uma margem-travessia para um estado de maior capacidade. Na nossa cultura os mortos têm um papel muito mais poderoso no destino das famílias do que propriamente os vivos, e o conjunto da própria família é essa soma de vivos e mortos.

Quando é que este livro chega às bancas?

Tivemos já a primeira edição produzida pela União de Escritores Angolanos (UEA) no âmbito da parceria com a empresa patrocinadora do prémio, a Sonangol. Saiu no passado mês de Março, mas era uma edição simbólica. Neste momento estou a preparar uma segunda edição para o público moçambicano, que certamente estará com curiosidade de perceber que romance é este cujo título é “A Carta da Mbonga”, que nos valeu o Grande Prémio de Literatura da Sonangol.

Mbonga é o nome da namorada?

Sim. Foi o nome que ela recebeu ou foi dada pelos avós. Mbonga é uma palavra ronga que significa mel de abelha rara. Aquele mel em que a abelha faz a sua colmeia debaixo da terra. Este tem valor acrescido relativamente ao mel comum e é muito difícil dar com esta abelha bem como com a sua colmeia. Digamos que Mbonga é uma raridade.

Quanto tempo levou a construir este romance?

O romance não foi escrito para o concurso Grande Prémio Sonangol de Literatura. Vinha escrevendo-o como uma forma de resgatar a memória de uma certa época – inclusive da minha própria época de menino – quando estive baseado em Marracuene a fazer o meu ensino primário… mas também no âmbito de uma trilogia que estou a escrever cujo título será “Trilogia da Terra” que procura resgatar a memória do lugar.

Há quem o considere um quase Sniper da literatura. Publica uma “bomba” e retoma ao seu bunker. Publica pouco. Qual é a razão?

Em algum momento teria dito que ainda não havia começado a escrever (risos), porque a minha rotina nunca foi organizada em função da escrita. A escrita foi acontecendo de forma casual no meio de tantas outras obrigações que a vida nos leva.

Não será que o engenheiro mecânico ofusca o escritor?

Nem vice-versa. Durante a minha formação de engenharia, sempre que tivesse uma ideia que me desse segurança produzia um texto, um conto… Nunca encarei a literatura como uma corrida de cavalos. Porém é verdade que há uma série de factores que vão nos tornando um pouco mais comprometidos. É o caso deste Grande Prémio Sonangol. Compromete-me um pouco mais na relação com a escrita e vamos ver se aquela trilogia realmente se concretiza e, quiçá, posteriormente possa chegar a uma maior regularidade em termos de publicação.

O encanto da sua narrativa escorregadia de “Ngilina, tu vai morrer” ou “Laurinda, vai mbunhar” (ver caixas 1 e 2), dois contos do teu livro cartão-de-visita “O regresso do Morto” também sulca o paladar deste novo livro?

É outra técnica. Tivemos “ O regresso do Morto”, “Palestra para um Morto” que é diferente do “Regresso” e pelo meio “ A morte de Baobá” que também é diferente. Eu sempre fugi a tentação de reproduzir “O Regresso do Morto”. Quis sempre encontrar um caminho novo porque essa é a minha visão da literatura. Um texto literário deve representar um abrir de caminho na mata. Deve nos dar essa sensação de frescura, de novo trilho que se está a pisar.

Recordo-me de ter lido algures que o livro “O Regresso do Morto” era o povo “falando pela própria boca”. Ainda hoje pensa assim?

Essa opinião foi da crítica. Não foi um pronunciamento pessoal. Mas até me surpreendeu positivamente. Num certo sentido concordo plenamente e não é por acaso que a UNESCO em 1994 apontou “O Regresso do Morto” como Obra Representativa da Literatura Moçambicana no Panorama Literário Universal, porque tem esse aporte… melhor dizendo, traz um pouco desse substrato cultural e faz a projecção dessa realidade moçambicana. Depois é um pouco unânime de tal sorte que muitas vezes sou tratado pelo título do próprio livro. Poucos me chamam pelo nome.

FARO DE LUÍS

CARLOS PATRAQUIM

Com que género literário se iniciou?

Pela poesia e prosa. Os dois estilos. Ora tenho um encontro que é determinante com o Luís Carlos Patraquim que na altura coordenava a Gazeta de Artes e Letras da Revista Tempo. Diz-me para lhe mostrar os meus trabalhos. Lê a minha poesia e a minha prosa e no fim diz-me: “Eu aposto na tua prosa. Agora mesmo vou iniciar a publicação dos teus contos na Gazeta de Artes e Letras.

Isso em que ano?

Anos oitenta, porque “O Regresso do Morto” é publicado pela primeira vez em 1989 (a 2ª edição saiu em 2015). Aliás, “O Regresso do Morto” é produto da recolha desses textos que foram sendo publicados na revista Tempo a começar por “Ngilina Tu vai morrer”. Foi o primeiro texto que o Patraquim publicou na sua Gazeta, que era um espaço exigente, mas que também procurava transmitir modelos porque ele também publicava os clássicos para nos dar referências. Era um espaço muito bom do ponto de vista de divulgação literária.

Como é que o engenheiro Suleiman Cassamo escreve com tamanha elegância estética? O seu passado enquanto estudante é de muita literatura ou é mesmo talento cromossomico?

O meu passado como estudante é feito bebendo de várias águas. Vou fazendo engenharia mas na mesma altura ia aprendendo com as leituras no campo da literatura. Vou descobrindo escritores que me encantam e me entusiasmam. Então esse encontro entre o rigor da engenharia e o sonho da literatura, creio que produz um pouco a minha visão da literatura e mais tarde produz um pouco o meu posicionamento estético assente numa escrita algo milimétrica também porque admirava o Jorge Luis Borges. Depois encontrei o Juan Rulfo, que também era do mesmo género, mas com a particularidade de apagar as suas próprias pegadas.

A Sophia de Melo Breyner Anderson, Augustina Bessa-Luis, Gabriel Garcia Marquez, José Lezama Lina, Mário Vargas Llosa …

Justamente. Essa gente toda me constrói de certa forma. O próprio Hemingway. Aprendemos bastante lendo os seus livros, não o Hemingway  de “O Adeus as Armas” , não o de “Por quem os Sinos Dobram” mas por exemplo o Hemingway de “O Velho e o Mar” que é fabuloso, fantástico (e carrega nas sílabas). Neste livro estamos perante uma novela, uma prosa, mas com um pulo poético fabuloso, fabuloso, fabuloso. Então esta capacidade de gerir a poesia, o impulso poético e o rigor próprio da prosa, acho que encontro um pouco nessas leituras e no próprio percurso da minha formação académica.

Ainda passeia pelos subúrbios de Maputo onde bebeu alguma inspiração muito bem retratado no teu livro de contos “O regresso do Morto”?

Sem dúvida. Tenho a minha casa em Laulane. Hoje este bairro já não é propriamente um subúrbio. Talvez Mafalala seja mais subúrbio que Laulane. Como sabe os  nossos “novos ricos” expandiram a cidade. Temos hoje vivendas de algum luxo nesses bairros periféricos.

Não corremos o risco de perder o Suleimane Cassamo a trazer aquelas badjias da tia Katidja?

(risos) … “As irresistíveis badjias da minha tia Katidja”. Ya. Lindíssimo. Lindíssimo. Essa fase de crónicas no jornal notícias, que é o jornal “irmão” do jornal domingo, foi uma boa escola porque sempre que nos dão um espaço para publicarmos é como dar a um Lionel Messi em miúdo um campo para dar toques na bola (risos).

Pode formular votos para a literatura moçambicana?

Que a nova geração continue a honrar o nome dos autores que nos precederam como José Craveirinha, Noémia de Sousa, Orlando Mendes, entre outros. Os prosadores moçambicanos são devedores de uma obra como “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana, que é publicada ainda nos 60. Não podemos esquecer um contista como o João Dias – autor de “Godido e Outros Contos” -. Há aqui um passado a respeitar.

Os seus livros estão traduzidos em quantas línguas? “O regresso do Morto” foi traduzido para francês…

Também em Espanhol. Podem não ser livros traduzidos na íntegra. Mas também no inglês e alemão.

Há quanto tempo não vai a Marracuene?

Estou sempre em Marracuene. Sou de gema.

“O Regresso do Morto”

 espanta crítica no Brasil

“O Regresso do Morto” continua a conquistar outras latitudes do globo?

Sim. Por exemplo foi gratificante saber que apesar de ter sido lançado em Março último no Brasil está sendo muito bem recebido. A crítica brasileira pergunta: porquê só hoje este escritor chega ao Brasil?

E o livro é do século passado. Passam pelo menos 21 anos depois da 1ª edição!

Sim. É a vida. Mas desde já devo agradecer a editora Kapulana que colocou o livro no Brasil e fez uma edição bastante cuidada. O livro está muito bem tratado. A crítica tem recebido com muito agrado a obra. Ainda que não sendo a única obra moçambicana publicada no Brasil creio que ela está a fazer boa figura.

Para terminar vou lhe fazer uma pergunta que nenhum jornalista devia fazer. Tem alguma coisa a acrescentar?

Ka ka ka ka.

Laurinda, tu vai mbunhar

A padaria olha a rua de alcatrão. Esse alcatrão a ferver nos pés nus de Laurinda. Mas Laurinda não sente o sol a derreter no alcatrão, a arder no zinco, a subir da areia vermelha da rua que entra, com seus grãos de ouro e diamante a brilhar, na salada de linhas, cores e odores do subúrbio.

Laurinda mordeu, outra vez, o lábio com força. Sentiu o sangue na língua. Que o sangue sabia a sal, há muito sabia. Mas misturado com raiva tinha um sabor novo, um sabor de merda. Explodiu:

– Sacana! Eu não vende com pãozinho! Eu não é puta, ouviu? Tem marido, filhos, eu. U…eu..- batia com a mão no peito – eu não é cadela ouviu? Você és moluene. Vai-te subir, moluene! Mbuiaguana! agora qu’stá massar tricô quer dormir com mulher de dono. Não tem vergonha!

O homem, dominado pelo feitiço dos olhos de Laurinda, chama-a

Ela tira o dinheiro da ponta da capulana. As mãos tremem e o dinheiro cai. O vendedor pega no cesto.

Os braços de caranguejo ficam monumentalizados no ar.

Laurinda não mbunhou o pão

Trecho de Ngilina, Tu vai morrer

Ngilina acordou cedo. Pegou na corda e no machado. Pareça que ia na lenha. O sol encontrou-a no caminho. Chegou no mato andava devagarinho. Subiu no canhoeiro, amarrou corda no ramo e a outra no pescoço. Depois, largou-se no ar e ficou a lengalengar.

Morrer é fácil. È mesmo bom. Ngilina dorme o sono de xiluva no meio da selva. Ngilina foi xiluva que murchou.

No mato, os bichos lutam e amam. O choro da rola é choro de verdade mesmo. E todos os outros bichos do mato vão também chorar Ngilina. Ela tem agora o pescoço na corda presa. Embora os olhos muito abertos, dorme o sono de nunca acabar. Nunca, nunca mais.

Tem pena sim.

Mamanôô. Youê.

Texto de André Matola
matolinha@gmail.com

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