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Um inimigo chamado álcool

Por admin

A dependência ao álcool constitui uma das doenças mentais com elevada prevalência no mundo, interferindo em diferentes aspectos na vida social do indivíduo. Moçambique não fica alheio a esse problema, afinal este mal tem afectado pessoas de todas idades, causando, inclusive, sofrimento na vida daqueles que vivem ao redor do alcoólatra.

Muitas famílias moçambicanas são afectadas por este problema. Nalguns casos, este mal compara-se a umtsunami quearrasa toda uma estrutura familiar. Nele são arrastados adolescentes, jovens e adultos de todos os sexos.

Factores ligados a toxicodependência passam pela excessiva convivência com o álcool na infância; o uso da bebida como escape quando confrontados por problemas sociais, até chegar à necessidade de inserção em determinado grupo.

De qualquer forma, a acessibilidade, a falta de políticas de fiscalização do consumo e venda e a ausência de diálogo no seio familiar continuam a ser alguns dos desafios para a redução e controle do álcool.

Desejei a morte do meu próprio filho

– Manuel Alage, pai de um alcoólatra

Manuel Alage residente no bairro de Maxaquene, considera-se um pai frustrado: seu filho Virgílio, de 20 anos é dependente de álcool há cerca de 4 anos. Tamanha decepção “cansei do meu filho. Já fez tanto mal aos vizinhos e a nossa família por causa do álcool. Cheguei a desejar a morte dele para acabar com este sofrimento”, desabafou senhor Manuel. Com um olhar nostálgico e semblante carregado partilhou o calvário do seu dia-a-dia, decorrente do problema do filho. “Em casa temos que trancar tudo porque ele tira as coisas e vende. Já vendeu três televisores nossos, até chapas de zinco no tecto da casa já roubou para comprar álcool”, revelou, ao domingo.

O filho dependente do álcool interrompeu os estudos na 9ª classe, e o motivo foi puramente banal.“Disse-me que já tinha muito conhecimento e que caso continuasse poderia enlouquecer. Minha esposa é que ainda tem piedade dele. O coração de mãe é muito sensível, mas eu já desisti dele”, afirmou senhor Manuel Alage, tendo acrescentado que Virgílio já foi parar nas celas da polícia várias vezes, e o motivo era sempre furto para sustentar o vício. Contudo, a família nunca pensou em procurar ajuda para o seu filho pois não sabe por onde começar.

Filho aprendeu

a beber com o pai

Mário João vive com seu irmão António, um jovem dependente do álcool há cerca de sete anos. Conta que seu irmão aprendeu o ofício ainda na adolescência. “Meu irmão era muito ligado ao meu falecido pai e foi nesta fase queprovou o primeiro copo de cerveja.Éramos novos, não entendíamos nada sobre os malefícios do álcool”. A exposição era ampla que “muitas vezes era ele quem ia comprar álcool para meu pai consumir em casa”, denunciou Mário João.

Hoje, com 32 anos de idade, Antonio já foi levado à um centro de reabilitação. “No ano passado a família tomou essa decisão. Esteve internado por cerca de seis meses. Chegou a afirmar-se recuperado, mas segundo Mário, António teve recaída e voltou a consunir alcool.

Batalha contra o vício

A nossa reportagem participou de uma reunião dos Alcoólatras Anónimos (AA) na Igreja António da Polana, na cidade de Maputo. É um grupo constituído por pessoas que lutam para abandonar o vício do álcool e outras drogas através de uma terapia de partilha de vivências e testemunhos na luta contra este mal. Reúnem-se às segundas e quintas-feiras às 18 horas. Para efeitos de proteção da personalidade dos elementos integrantes do grupo, uma das condições apresentadas para interagir com o grupo, foi omitir alguns dados para sua identificação.

Queria ajuda para beber

sem perder controlo

-M. Clara

As sessões decorrem num ambiente sereno. Os participantes sentam-se em cadeiras perfiladas em formato rectangular.

O primeiro testemunho colhido pelo domingo foi o de M. Clara. Uma jovem esbelta e de personalidade marcante. 

M. Clara começou a participar nos encontros com outros alcoólatras anónimos com a intenção de saber controlar o consumo do álcool. Já lá vão11 meses. “Eu vim porque estava à procura de controlo ao consumir bebidas alcoólicas. A minha intenção era aprender a beber socialmente sem excessos”, contou a jovem.

M. Clara descobriu-se viciada. “Aqui percebi que estava doente”. O álcool a levava a consumir, inclusive, outras drogas, daí que “uma luz de Deus fez-me procurar ajuda. Eu andava desmoralizada porque estava a perder o meu carácter, a minha personalidade”, revelou.Actualmente a sua maior luta é no sentido de nunca mais ter contacto nem com o álcool muito menos com outras drogas.

Hoje sou um homem diferente

– H.Manuel

H. Manuel não bebe há um ano. Ao longo do encontro afirmou sentir-se um homem diferente e no bom caminho para a recuperação. Contudo, segundo disse, “a vida fora daquela sala é tentadora, a cada esquina existe álcool exposto”.

No entanto, H. Manuel já canta algumas vitórias. “Estou orgulhoso por ter resistido a uma tentação. Participei numespectáculo e durante três horas simplesmente me agarrei a uma garrafa de água. No passado não era assim. O engenheiro de som ficou admirado. E hoje sou mais calmo, mais paciente, consigo ouvir, respeito as pessoas e quando estou errado peço perdão”, festejou.

Há 11 anos que luto

para não voltara beber

– F. Carlos

F. Carlos é adulto e está há 11 anos sem provar álcool, um vício que lhe havia entrada na sua juventude aos 24 anos e parou aos 49 anos.

A timidez foi o motivo que o levou a beber pela primeira vez. “Depois de me formar, comecei a dar aulas. Eu sabia que tinha minhas limitações porque não tinha instrução para o professorado. Tinha medo de encarar os alunos Até que um amigo aconselhou-me a beber um copo de cerveja para conseguir enfrentar a classe. E aos poucos fui aumentando a quantidade de consumo”, conta.

F. Carlos experimentou tudo que era álcool, incluindo o álcool puro e ao fim de muitos anos começou a usar outras drogas. Teve a primeira mulher de quem se separou por causa da dependência química. A sua vida era promíscua. O caminho para a libertação foi a reabilitação. A primeira vez “Fui, mas não aceitava ainda o meu problema. Quando foi da segunda vez estava desesperado. Não conseguia parar. Trata-se de um vício terrível. Inicia com a morte espiritual depois a intelectual”, considerou. Mais adiante acrescenta que não morreu e não contraiu outras doenças por sorte. “E estas sessões foram determinantes para me pôr a salvo. A primeira vez que participei foi em Portugal. E quando voltei para Moçambique decidimos criar esta sala”, disse.

Apoio familiar é crucial

-Sarmento Govene, Psicólogo Clínico

De acordo com o Psicólogo Sarmento Govene, o apoio familiar revela-se fundamental para a recuperação do dependente químico. “O primeiro passo que damos quando se decide fazer uma intervenção a um indivíduo que sofre com o álcool é trabalhar com a sua famíliapara entender como ela se sente e o que pensa a respeito do dependente”, explicou Sarmento Govene.

Govene sublinhou que esta avaliação é feita para melhor preparar a família e ajudar o alcoólatra a superar a situação. “Quando a família é a primeira a ter preconceito e estigmatiza o que a sociedade vai fazer?”, questionou.

Sarmento chamou atenção para o facto de um de o indivíduo se tornar dependente sem se aperceber. “As pessoas não olham para o consumo de álcool como um problema.Elas começam por consumir um copo, depois dois copos e vão aumentando a quantidade e consequentemente se prejudicando, na busca do efeito do prazer, já que o acto de consumir é sempre na busca de algum prazer”.

Outro aspecto importante no processo de recuperação do doente é conhecer o estilo de vida do paciente, pois parte considerável dos doentes tem ou teve um historial de alcoolismo na família e adoptou como um comportamento modelo. “Por exemplo, o pai que bebe frequentemente na presença dos seus filhos ou algumas vezes mando-os comprar álcool, terá seguidores no amanhã”, alertou.

“E os primeiros anos de vida, especialmente dos 3 a 5 anos, são conhecidos como cruciais na educação da criança. É nesta fase que ocorre o que chamamos de modelagem. O ambiente onde a criança convive nesta fase pode contribuir para um encaminhamento saudável ou desvio comportamental.Se na casa em que vive ela vê o pai alcoólatra ou fumante ou mesmo um ladrão a criança pode assimilar aquela realidade como uma forma de vida normal.   

De acordo com Sarmento Govene o álcool tem uma diversidade de componentes químicos. Em contrapartida, o nosso corpo também produz componentes químicos que quando activados garantem a sensação de bem-estar. Quando a pessoa consome álcool a intenção é aliviar aquilo que tem como tensão.“Por exemplo tem gente que consome álcool para aliviar problemas sociais e convencem-se disso. E o que vai acontecendo neste processo é que ao ingerir o álcool activa-se os componentes químicos que por sua vez vão alterar o metabolismo normal dos seus componentes. Com o tempo, este processo faz com que a necessidade para o nível de bem-estar aumente.

Celebridades e o drama do alcoolismo

A dependência ao álcool não escolhe nem cor de pele e nem estrato social. Prova disso são os casos registados de figuras internacionalmente conhecidas que experimentaram momentos amargos das suas vidas e algumas encurtaram as suas vidas por causa deste mal. 

Só para citar alguns exemplos, nos Estados Unidos, Paris Jackson, de 17 anos, filha do reconhecido e eterno ícone da música pop, Michael Jackson, admitiu recentemente nas redes sociais ser alcoólatra e declarou que no momento luta para abandonar o vício participando nos encontros dos Alcoólatras Anónimos.

O actor Daniel Radcliffe, que interpretou o papel de Harry Potter nos cinemas, também admitiu, em 2014, ter problemas com álcool, tendo apontado para a pressão e a expectativa de seguir a carreira depois do fim da saga (Harry Potter) como justificativa para mergulhar no problema. Ele lutou e parou de consumir em 2010. Outra estória não menos triste foi da reconhecida cantora Amy Winehouse que, com 27 anos de idade, foi encontrada morta no seu apartamento em Londres entre garrafas vazias de bebida. O laudo médico confirmou a intoxicação por álcool.

Luísa Jorge
luísajorge@snoticias.co.mz

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