Celebrar a excelência nas artes e no teatro em particular foi o toque mágico para uma singela homenagem à Lucrécia Paco, uma das mais distintas actrizes do nosso universo artístico. Iniciativa da plataforma “Café – Debate”, a cerimónia foi bastante animada mas também carregada de muita emoção, numa tarde amena em Marracuene.
Esfera relaxada, poesia, música acústica e muita emoção, sob o lema “Lua, Crença, Palco – Da Plenitude do Eu à Sublimação do Outro” – Lucrécia Paco, uma das maiores actrizes moçambicanas, foi solenizada. A cerimónia teve lugar no Mady`s Eventos, Marracuene, e arrastou muitos amantes das artes.
Dionísio Bahule, curador do evento, explicou ao domingo o que levou o Café-Debate distinguir a artista. “Optamos por render homenagem a Lucrécia Paco devido ao trabalho que ela tem efectuado no universo do teatro. Entendemos que o teatro é uma literatura representada, resolvemos seleccionar três palavras para nortear a atmosfera do evento: Lua, crença e palco. Na verdade, uma recriação do nome da actriz. Sendo que a lua representa luz, razão; a crença, as convicções que a movem e o palco o local onde se funde as duas realidades. Portanto, desenhamos este conceito para homenagear uma actriz e activista cultural e, porquê não toda a mulher engajada”.
Acrescentou que Lucrécia Paco é um nome incontornável do teatro moçambicano, merecendo portanto aquele reconhecimento público. “Nós quisemos trazer as pessoas com quem ela fez a história, com quem ela faz a vida e que possivelmente fará a vida. A escola por onde passou, a mãe que lhe formou – Manuela Soeiro – e também os irmãos”.
Esta homenagem não foi ao calha. É pelo facto de Lucrécia ser um dos expoentes do teatro. Bahule chama atenção para período consumista que vivemos, onde só temos obra e não arte. Para o jovem, a figura de Lucrécia funde a obra e arte. “Ela é o protótipo de arte e do teatro moçambicano”, concluiu.
Como já é tradição, a 13ª edição do Café-Debate debruçou-se primeiro sobre o tema “Da plenitude do eu à sublimação do outro” com enfoque no papel da mulher no teatro e na quebra de paradigmas pré-estabelecidos na sociedade.
Mas antes disso, a música fez milagres. Chico António dedilhou a sua guitarra e levou a plateia a fazer coros espontaneamente. Chico António cantou vários temas do seu disco “Memórias” e emprestou ao ambiente a atmosfera necessária para uma conversa rica em torno do papel da mulher, não só no teatro, como noutras esferas de desenvolvimento da sociedade.
Várias intervenções foram feitas enaltecendo e dando exemplos vivos de como a mulher, na sociedade moçambicana, tem estado na linha da frente. Nomes como Manuela Soeiro (teatro), Elvira Viegas (música), Paulina Chiziane (literatura), Graça Machel (activista social) foram apontadas como exemplos de mulheres que, com trabalho e entrega, ajudam de forma positiva a construir um mundo melhor para todos.
ZAZANA MISSAVA
Depois da conversa, da declamação de poesias, seguiu-se o momento mais alto da 13ª edição do “Café – Debate”. Roberto Chitsondzo, buscou no seu alforge dois temas bem suaves dedicados especialmente a Lucrécia Paco. Depois, Manuela Soeiro, matriarca do Grupo Mutumbela Gogo, agremiação onde Lucrécia Paco ganhou o mundo com a sua arte, teceu algumas considerações.
Falou dos primórdios da carreira da Lucrécia Paco e dos desafios que esta teve de enfrentar para poder fazer teatro. Revisitou algumas obras do Mutumbela e destacou alguns personagens interpretados pela actriz.
“Lembro-me da interpretação que fez da Ritinha na peça “Meninos de Ninguém”; era um papel modesto mas ela tornou-o grande graças a alma que emprestava aos personagens. Ela vivia. Não se limitava a interpretar. Esse é apensa um exemplo dos muitos que eu podia dar”, disse Manuel Soeiro antes de a oferecer um ramo de flores em nome dos colegas do Mutumbela Gogo.
Tony Paco, representando a família da actriz, visivelmente emocionado, buscou na sua memória episódios da infância no Bairro do Aeroporto e depois no Bairro Central. Tony destacou o papel da irmã no teatro dizendo que “espero que esta homenagem sirva para te dar forças a continuares a fazer o que sabes. É um compromisso público mas acredito que tens talento para fazer a diferença”.
Celso Paco, outro irmão de Lucrécia Paco, radicado na Suécia, enviou um vídeo onde expressa o seu amor pela irmã e faz votos para que ela se restabeleça quanto antes “para podermos voltar a trabalhar em palco”. Refira-se que tanto o Tony quanto o Celso são todos artistas de mão cheia. Tony é membro do Ghorwane e Celso segue a sua carreira musical na Suécia.
Belmiro Adamugy, jornalista e membro do “Café – Debate”, teve a responsabilidade de falar da obra da homenageada. Ele que foi colega da homenageada na Escola. “Nós estudamos juntos na 5ª e 6ª classes e depois iniciamos as nossas actividades teatrais no Tchova Xita Duma”, disse justificando, assim, o facto de ter sido eleito para essa nobre tarefa.
O jornalista tinha em mãos a justificativa da homenagem a que intitulou “Zazana Missava ou Quando a Lua casa com a Crença no Palco da Vida” do qual, quebrando as regras protocolares, preferiu buscar algumas partes optando em improvisar o que conferiu outra tonalidade ao momento.
Disse, por exemplo, que “a história do teatro nacional não pode ser escrita, de forma alguma, sem incluir o nome de Lucrécia Paco. Qualquer outra atitude seria uma pura heresia. Uma blasfémia. Quando, há 30 anos, nasceu o Mutumbela Gogo, também se inscrevia nos cânones da nossa história teatral, a estória de Lucrécia Paco, uma mulher que lutou contra todas as probabilidades para singrar e vencer num mundo tradicionalmente votado ao machismo… isto desde os tempos imemoriais da antiga Grécia!”
Lembrou que a actriz já actuou em vários países, a exemplo de Portugal, Alemanha, França, Noruega, Suécia, Argentina, Espanha. Ela é igualmente poliglota, falando português, changana, inglês, francês, espanhol e alemão. Lucrécia, é também poetisa e directora artística.
Adamugy não hesitou em citar Artaud dizendo: não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico como qualquer outra série de ideias e actos humanos. Buscou ainda Stanislavski para dizer que o actor deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar sistematicamente os seus dons, desenvolver seu carácter; jamais deverá desesperar e nunca renunciar e este objectivo primordial: amar sua arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo
Afastada dos palcos há pouco mais de dois anos, Lucrécia Paco viu muitos filmes soviéticos e de tanto ir ao cinema ver esses filmes, despertou nela a vontade de ser actriz. Assim, a primeira vez que teve acesso a um teatro optou por entrar para a vida teatral. Quando Manuela Soeiro a convida para integrar o grupo Mutumbela Gogo ela não hesita. Era ali onde queria estar.
O resto é história. Participou em mais de 50 peças teatrais. Noutros tantos filmes e seriados televisivos. Dirigiu alguns espectáculos, sendo a última peça “Mulher Asfalto”, um monólogo perturbador, que exibiu não só no país como também na diáspora.
Além de palavras de carinho, não faltaram presentes, abraços e mimos. Lucrécia Paco ficou emocionada durante todo o evento, e não era para menos. A actriz recebeu flores e uma tela de pintura da autoria de Ventura Mulalene.
Reagindo à distinção, a actriz vê no gesto uma motivação para continuar a trabalhar. “Aceito, recebo, abraço como um acto de encorajamento. Por este gesto, sinto uma grande responsabilidade pelo caminho que tenho de seguir em frente”. São 30 anos de carreira, o mesmo tempo que tem a Companhia Teatral Mutumbela Gogo, o seu berço. Por isso, os seus agradecimentos foram sobretudo para sua mestre Manuela Soeiro e ao Henning Mankell, dramaturgo sueco que trabalhou com Mutumbela Gogo desde a primeira hora.
Nos últimos tempos, Lucrécia Paco andou arredia dos palcos muito por conta de alguns problemas de saúde, contudo, volta à ribalta com um desafio: fazer mais um monólogo! O espectáculo poderá ser visto brevemente nos palcos da capital do país.