A única alternativa para ex-presidiário em Moçambique é voltar a ser criminoso
O sucesso da Política Penitenciária moçambicana, que preconiza a reforma para a humanização do tratamento dos reclusos e a sua efectiva reinserção social, passa por uma outra reforma estrutural da legislação laboral com vista a remoção das barreiras que constituem hoje um verdadeiro paradoxo.
Por um lado temos um conjunto de esforços visando reformar e modernizar o sistema prisional, onde se inclui formação adequada dos agentes penitenciários, incluindo especializações em psicologia, formação de sociólogos bem como criação de escolas próprias a vários níveis.
Tudo isto com vista a corporização do ideal da humanização. Mas, por outro lado, temos um manancial de impedimentos dessa integração social espalhada em diferentes frentes da esfera produtiva e até afectiva.
Um estudo desenvolvido pelo autor destas linhas e apresentado no V Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais na Universidade Eduardo Mondlane em 1997 foi encontrado um índice muito elevado de reclusos reincidentes.
Mais recentemente, finalistas de licenciatura em Ciências Policiais na ACIPOL desenvolveram novos estudos junto de entidades prisionais tendo encontrado igualmente um índice preocupante de reclusos reincidentes, do que se concluiu que as prisões não estão a contribuir para a almejada reinserção social dos reclusos.
Estas conclusões não deixaram o domingo sossegado. Isto nos levou anos de análise para entender o que se passava. Decidimos olhar para a sociedade onde o ex-presidiário deve ser integrado.
Em primeiro lugar olhamos para as condições para a empregabilidade do ex-presidiário. Em segundo lugar, olhamos para outros preceitos e legislações que gerem a vida social no nosso país e o lugar que reservam para o ex-recluso. Isto tudo antes de uma análise, quiçá, sociológica das percepções e estigmas que a própria sociedade reserva ao ex-presidiário.
O ESTADO, COMO PRINCIPAL EMREGADOR
Um dos pontos de partida para a reinserção social de qualquer indivíduo é a possibilidade de conseguir um emprego. Como defendeu Mia Couto no seu discurso de Doutor Honoris Causa pela Universidade A Politécnica em 2015, a ideia de formação para o empreendedorismo não pode ser tida como estratégia central, pois não se pode esperar que toda gente se torne empresária. Fielmente, Mia Couto disse: fomenta-se o empreendedorismo como se toda gente tivesse uma empresa ou quisesse ser empresária.
Concordando com esta linha de pensamento e atendendo que o Estado é o principal empregador formal em Moçambique, olhamos para os requisitos para quem queira ser funcionário ou agente do Estado. Para tal, consultamos o Estatuto Geral e Regulamento dos Funcionários e Agentes do Estado, Lei nº 14/2009, de 17 de Março e o Decreto nº 62/2009, de 8 de Setembro, respectivamente.
O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado preconiza na alínea g) do nº 1 do Artigo 12º como um dos requisitos para emprego no aparelho do Estado: não ter sido condenado à pena de prisão maior… Logo aqui fica vedada a possibilidade de emprego no aparelho do Estado para qualquer um que tenha sido na sua vida condenado para uma pena igual ou superior a dois anos.
Aqui seria interessante verificar que tipo de crimes leva a uma condenação de dois, três a cinco anos. São os chamados crimes leves mas que levam a pessoa a ficar condenada por toda a vida e a não encontrar alternativas de emprego ou de produção de rendimento bem longe de tudo o que tem a ver com o Estado.
A mesma alínea prossegue nos requisitos… não tenha sido condenado a pena de prisão maior, de prisão por crime contra a segurança do Estado, por crime desonroso ou por outro crime manifestamente incompatível com o exercício de funções de administração pública.
À primeira vista tudo isto soa a legítimo.Arrepia imaginar que um antigo presidiário possa vir a ser funcionário público, com possibilidade de ascender na carreira até vir a ser dirigente. Tudo bem.
Não pretendemos negar isso. O problema é para onde então vai o condenado a pena maior depois de cumprir a sua pena? Quando o legislador colocou estes requisitos manifestava confiança ou desconfiança ao papel reeducativo do sistema penitenciário?
É que é um paradoxo o dono das cadeias, que diz preparar as pessoas para se regenerarem e assim serem reintegradas na sociedade, ele próprio não aceitar conviver com os seus supostos regenerados.
Enquanto preparava este artigo de fundo contactei uma especialista e docente de Administração Pública para ajudar a interpretar os requisitos acima citados. Ela concordou com a nossa interpretação de que, efectivamente, não há lugar para emprego de um antigo presidiário que tenha sido condenado com uma pena maior. E ainda comentou sobre os recentes casos de beneficiários de indulto presidencial que tiveram que recolher aos calaboiços, provando que de regenerados não têm nada. Na verdade, mesmo que tenham se regenerados, a sociedade não lhes reserva mais nada senão continuar na prática da criminalidade. A sociedade não atrai este indivíduo para outras actividades decentes.
Para piorar, mesmo o sector informal ou empresarial, apresenta suas restrições, onde um antigo presidiário pode não ser autorizado a abrir certos negócios, deitando assim por água abaixo mais outra possibilidade de reintegração, desacreditando totalmente o sistema penitenciário
NEM MESMO PARA CHAPEIRO,
NÃO HÁ ESPAÇO PARA O Ex-presidiário
Um dos requisitos para a atenção de carta de condução para o transporte público de passageiro, onde estão incluídos os chapeiros, uma das áreas de emprego massivo, é a apresentação de certidão de Registo Criminal. O objectivo daquele documento é exactamente o de saber os antecedentes criminais do candidato.
Assim, o candidato que apresente no seu cadastro o facto de ter sido condenado a uma pena maior, está imediatamente impedido de obter uma carta de condução para o transporte de passageiros. Aqui vai mais uma porta fechada ao ex-presidiário.
POLÍCIA EXPULSO, POTENCIAL COMANDANTE DE CRIME
Ainda nesta linha de reflexão, fomos então desembocar nos homens da lei e ordem que por alguma razão caiam fora da corporação.
O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado é peremptório. Ainda no nº 1 do Artigo 12º, alínea f) sentenceia como requisito para nomeação, que o candidato não tenha sido expulso do aparelho do Estado.
Aqui a questão é mais preocupante quando estamos a falar de homens que estudaram as técnicas policiais e exerceram a profissão que depois de expulsos não podem vir a ser admitidos em tudo que seja Aparelho do Estado. O que resta a estes homens, então? Sem acompanhamento nem plano de reaproveitamento ou reabilitação, só resta ao ex-polícias dirigir com perícia actividades criminais, desta vez com consciência compensada pela ideia de não ter alternativa.
NEM PODE CASAR
O nosso sistema judicial, embora se declare não inquisitório, vai mais longe no castigo perpétuo aos seus prevaricadores, sem acreditar na possibilidade de regeneração e arrependimento, aplicando penas continuadas e pós- reclusas, ao, em certos casos, até impedir o ex-presidiário de casar.
Para quem já casou civilmente ou pelo menos tem testemunhados casamentos do género, certamente tem ouvido atentamente o conservador a enumerar os impedimentos para contrair matrimónio: não podem contrair matrimónio entre si os irmãos, os unidos do afinidade parental, mesmo que seja por adopção, os que sofram de doença mental, mesmo que tenham intervalos de lucidez e…aqueles que tenham sido condenados por homicídio ou tentativa de homicídio voluntário ao cônjuge.
Não restam dúvidas que é horrendo imaginar-se a casar com quem assassinou sua esposa ou esposo. O que está em causa, porém, é o papel que o sistema prisional terá tido na regeneração e no arrependimento do cidadão. Só que ao ser entregue a sociedade, encontra uma lei civil que, para além de lhe impedir de trabalhar, até mesmo de ser chapeiro, lhe nega a possibilidade de casar. O que se pode esperar deste cidadão, é engrossar as fileiras de criminosos e até mesmo de violadores, uma vez que nem pode casar.