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Profissão: coveiro!

Por admin

Se a parteira tem o raro privilégio de nos receber no primeiro instante que conhecemos o mundo, o coveiro é o último a nos conduzir à derradeira morada. Exactamente por isso devia exercer profissão igualmente nobre. Desconhecida para muitos, apesar de exercida por homens que convivem com a dor de centenas de cidadãos que passam pelo cemitério, a sua actividade está além do mero labirinto e estribilho da morte. É profissão com rosto humano. Alimenta famílias. Coloca crianças na escola…

Diante de nós está um homem mais conhecido por “Moçambola”. Rosto encovado, atravessado por rugas; olhar compenetrado e com pouco brilho nos olhos. Ele nos oferece o retrato mais que perfeito de um coveiro.Tenta olhar para nós com alguma simpatia. Contudo, perpassa certa altivez no comportamento ditado pelas circunstâncias. O homem está mais concentrado no buraco de um metro e alguma coisa de profundidade do que propriamente em conversar connosco. “Não vos posso esconder. Quero que a entrevista termine bem depressa, para dar última morada a alguém que bem precisa”, diz-nos ele, recordando que só aceitara falar connosco porque recebera ordens nesse sentido.

Compreendemos. O ambiente também não ajudava muito. Milhares de campas ofereciam o testemunho mudo de uma conversa manifestamente difícil. Até porque a morte nunca dá alegria a ninguém. Um funeral decorria. Choros intervalavam tudo, mesmo na “janela” do pensamento.

Uma coisa nos impressionou na conversa com “Moçambola”: chora sempre que enterra corpo de uma criança.

A SIMPATIA DOS MORTOS

Vale a pena repetir isto: o homem chora sempre que se vê perante o dever de acompanhar uma criança à última morada, porque com corpos adultos perdeu toda a sensibilidade.

Motivo: “já me habituei às mortes. O meu papel é proibir o sentimento de se manifestar sempre que enterro alguém”, diz ao repórter, revelando toda a seriedade deste mundo.

E não se trata de sentimento isolado. Igual sentimento fomos encontrar nos seus companheiros de jornada, todos eles com acima de cinco anos de experiência em enterros.

São esses os sujeitos da Reportagem que uma equipa do domingo fez, há dias, no Cemitério de Michafutene, em Maputo, cemitério que em menos de dez meses registou dois mil corpos enterrados.

Olhando para a imensidão de campas, os entrevistados exclamam quase em uníssono: “nós é que acompanhamos homens, mulheres e crianças que jazem aqui. Sabem o que ganhamos? A simpatia dos mortos”.

“NÃO SABEMOS QUANTAS PESSOAS ENTERRAMOS”

No Cemitério de Michafutene trabalham 30 coveiros. Divididos em dois turnos. Vieram, na sua maioria, do Cemitério da Lhanguene, onde perderam a conta dos enterros que já realizaram.

Natural de Maputo, Anselmo Alexandre Chissico trabalha há dez anos como coveiro. Iniciou-se no Cemitério da Lhanguene, na cidade de Maputo, e agora presta serviços no Cemitério de Michafutene. “Completo este ano 11 anos como coveiro”, disse.

Com três filhos, orgulha-se do facto de todos frequentarem a escola. “Consigo colocar os meus filhos na escola com o fruto do meu trabalho”, sublinha com orgulho, acrescentando que gostaria que tivessem sorte diferente, abraçando o que classificou de “melhores profissões”.

Falando particularmente do seu trabalho, referiu que não podia esperar coisa pior. “O salário é pouco para o trabalho que fazemos. Ganhamos três mil meticais por mês”, explica.

Disse ainda que muita gente pensa que o coveiro apenas abre covas que servem como última morada. “O nosso trabalho não é apenas abrir covas”, esclarece, acrescentando que a remoção de corpos também faz parte da agenda.

“Trabalhamos muito mal. Duramente. No Cemitério de Lhanguene, removíamos corpos não reclamados a partir do Hospital Central de Maputo”,recorda, salientando que desse trabalho não recebiam subsídio de risco e às vezes nem leite era distribuído.

Perguntamos ao coveiro Chissico se não sentia choque no trabalho de remoção e enterro dos mortos. Resposta: “Já estou habituado. Perdi grande parte da sensibilidade que tinha. Trabalho é trabalho”.

O mesmo sentimento “transpira” na conversa com Marcos Artur, 30 anos de idade. À semelhança de Chissico, tem dez anos de serviço e é pai de três filhos.

Revelou que já fez mais de 200 enterros só nos últimos meses da sua já longa carreira e, por isso, já não sente qualquer espécie de choque. “No princípio ficava chocado, mas por querer trabalhar continuei a enterrar corpos. Hoje estou habituado”, apontou.

“DÓI CARREGAR CORPOS DESCOBERTOS”

Os entrevistados suplicaram para que não esquecêssemos de apontar o que se segue: “se já é violento carregar um corpo à vala comum, imaginem o que é o mesmo não estar coberto e parar-lhe às mãos…

Coveiros queixam-se a respeito dos procedimentos de remoção de corpos, sobretudo no Hospital Central de Maputo e no Hospital Geral José Macamo, duas unidades sanitárias que têm “despachado” centenas de mortos à vala comum.

“Somos obrigados a carregar corpos cara a cara”,enfatizam, explicando que os cadáveres não são embrulhados em plásticos, nem em lençóis. “Param nas nossas mãos sem nada”, salientam.

Neste aspecto, o Hospital Geral da Machava é um caso a elogiar. É visto como uma unidade sanitária mais séria, por embrulhar os cadáveres. “Este hospital é mais sério. Os corpos vêm em plásticos ou embrulhados em lençóis”, ressalvaram.

É neste contexto que reivindicam melhor salário. “Recebemos três mil meticais de salário para trabalho duro como este”, queixa-se o coveiro Marcos.

Vale a pena escutar, outra vez, o coveiro Fernando Bernardo “Moçambola” , 38 anos de idade. Não disse coisa diferente. “Trabalhamos muito mal. Trabalho pesado para ganhar três mil meticais. O problema é salário. Não temos subsídio de risco. Ainda não estamos no quadro”, apontou.

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