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Venenos sem contra-venenos

Por admin

Renato Caldeira

O Freitas Branco, conhecido árbitro, chegou-se a mim um dia e disse: “você vai fazer parte da 1.ª Comissão Nacional de Árbitros de Futebol”! Tinha eu uns 30 anos, estava na 1.ª linha do 

jornalismo desportivo, vivia-se a euforia do desporto novo. Não o levei a sério. Um jornalista a dirigir árbitros? Nem pensar.

Dias depois, recebo um telefonema de Raul Dias, ex-árbitro em Nampula, um homem muito ponderado e sisudo, a convidar-me para um café, onde falaríamos de um assunto importante. Era a criação da CNAF. Ele seria o Presidente e eu o vice. Referiu que a proposta “vinha de cima”.

O contacto foi breve, a tomada de posse, com o meu nome já “aceite”, era no dia seguinte. O tempo era de aceitar como uma distinção, mas não deixei de questionar:

– Como, e a que propósito, o meu nome, homem de Informação foi apontado para a CNAF?

O Raul Dias “descodificou”, dizendo que o então Assessor do Presidente Samora Machel, Muradali Mamadhussen foi quem o indicou e que possivelmente o “chefe grande” já teria conhecimento.

Tomei posse. Entusiasmo para fazer coisas, era o que não faltava na altura. Desenhámos o emblema dos árbitros, fizemos nomeações e realizámos cursos. Simbolicamente, eu levava para os encontros com os juízes, um casaco, que fazia questão de despir antes das reuniões, como sinal de afastamento da outra “camisola” que vestia.

O futebol, na altura, vivia a fase mais efervescente de sempre. Basta dizer que nos grandes jogos, na Machava, os retardatários tinham que comprar os bilhetes no mercado negro.

 

UMA ESCOLA PARA A VIDA

 

Os árbitros nacionais de então, eram verdadeiros “pesos-pesados”. E estavam divididos por afinidades, interesses e talvez extractos sociais. Freitas Branco, Garrincha, Issufo Costa, Jean Lucien, de um lado; Salvado, António Alves, Gil Milando e Daúde, do outro. Havia ainda Almerindo Lopes e Magalhães Jorge, de Nampula; Baptista Júnior, da Beira.

As reuniões eram duras, as análises muito aprofundadas. Após os grandes jogos, discutiam-se, lance a lance, as boas ou más arbitragens. Recordo-me que até exigíamos que os árbitros internacionais soubessem o básico da geografia e história do país, de modo a não nos envergonharem no estrangeiro. Era para eles uma “seca”, cumprida a contra-gosto pela maioria!

Do meu lado, como apaixonado pelo desporto e para estar à altura de tamanha responsabilidade, tomei uma decisão que muito me ajudou na minha carreira de jornalista desportivo: estudar, interiorizar e teorizar as Leis do Jogo, “dissecando” noite e dia as várias “nuances”. Fiz um curso de Árbitros, dirigido por Áulio Nazareno Ferreira, Presidente da Comissão de Árbitros do Brasil, com exemplos simples, práticos e que permanecem comigo até hoje!

Tudo isto para dizer o quê? Em primeiro lugar, que foi um mal a vir por bem. É que, para poder enfrentar os “cobras” da arbitragem de então, que se consideravam verdadeiros “sabe-tudo” e para não passar por vergonha dadas as minhas funções no jornalismo desportivo, enchi-me de brio e passei a ter toda a matéria futebolística na ponta da língua.

Lindos tempos em que, apesar das dificuldades, a corrupção, no sentido em que hoje se fala – e creio que acontece – não estava no horizonte de ninguém.

O mal da época era uma certa sede do poder, de ser “estrutura”.

 

NOMEAÇÕES INTERNACIONAIS

 

Vivia-se um tempo de enormes carências dos bens mais básicos. Daí a apetência, autênticas guerras” pelas nomeações internacionais, em que se ganhavam muitos dólares, prestígio e mordomias. O peso da responsabilidade de nomear os árbitros recaía em nós, uns autênticos “sem terra”.

Muitas manobras aconteceram para nos dividir. A partir da cor, da religião, da idade. Mas a CNAF era, na realidade, uma estrutura forte, coesa e INCORRUPTÍVEL. Não estarei tão seguro de que os árbitros nos acompanhavam. Mas avisos, repreensões e punições, eram uma realidade, ditos às pessoas olhos nos olhos, seguidos da formalização nos papéis.

Hoje, com muita mágoa, analiso os jogos sob a perspectiva de viciação dos resultados, com disfarces indisfarçáveis sobre a identificação da mão que subornou. São tempos envenenados, mas em que não conseguimos aplicar – apesar de conhecermos – os contra-venenos.

Saudade ou saudosismo, a verdade é que esta questão é a principal responsável por dois grandes males: o alheamento dos campos, especialmente no Sul do País e a violência que estoira num ápice, sempre que se instala a suspeição.

 

 

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