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TOMAZ SALOMÃO: Modelo de integração na SADC pode ter assentado em bases erradas

Por Idnórcio Muchanga

Tomaz Salomão, antigo ministro do Plano e Finanças de Moçambique, o único moçambicano que até ao momento assumiu as funções de secretário executivo da Comunidade dos Países da África Austral, SADC, admite, em conversa com o nosso semanário, que algo pode ter falhado no audacioso processo de integração regional.

Salomão, que prestou declarações pouco depois do lançamento do seu livro, com o título “Memórias ao Serviço da SADC”, sublinha que eventualmente as várias etapas de integração podem não ter acontecido por razões várias. Uma é que as premissas foram estabelecidas em bases erradas ou num modelo muito teórico que a prática mostrou que não podiam funcionar.

“Não quero tirar mérito aos meus predecessores ou a quem concebeu isso antes, porque o Plano Indicativo Regional é um trabalho magnífico, mas as premissas em que ele assentou não eram viáveis ou factíveis para as condições em que a região vivia”, ressalva.

GESTÃO DE CONFLITOS OCUPOU GRANDE PARTE DA MINHA AGENDA

“Memórias ao Serviço da Comunidade dos Países da África Austral”, SADC, é o título do seu livro mais recente. Nele aborda momentos especiais da sua vida durante os dois mandatos que foi secretário executivo desta organização regional. Pode nos revelar os motivos que o motivaram a assumir o cargo?

Como digo na contracapa do livro, assumi o desafio, porque acreditava na altura, em 2004, 2005, que ia fazer um teste sobre hipóteses de implementação de um governo que a SADC adoptou como modelo de integração.

Tal modelo toma a paz e estabilidade como um dado adquirido e, a partir daí, considera a facilitação do comércio e desenvolvimento de infra-estruturas como os fundamentos para um processo de integração que levará a estágios mais profundos em função das metas que a própria região se estabeleceu.

Isto foi o que me motivou e me animou a candidatar-me para este posto. Mas estando lá a realidade começou a mostrar outras coisas…

Que tipo de coisas?

A gestão das diferenças de abordagem ou diferenças de pontos de vista de países-membros em matérias diversas. É por isso que grande parte do meu tempo na SADC transforma-se num tempo de gestão de conflitos, apoiando as equipas de mediação que foram designadas por diferentes cimeiras para mediar processos, em particular na República Democrática do Congo, no vizinho Zimbabwe, no Madagáscar e no Reino do Lesoto.

Está arrependido por ter estado na liderança da organização?

Antes pelo contrário. Eu creio que foi uma grande escola. Passei a conhecer melhor a realidade destes países e do continente por ter tido a oportunidade que, seguramente, em condições normais não havia de conhecer. No Congo conheci Kivu, Bukavu e o Leste do país onde Patrice Lumumba foi morto.

A gestão de conflitos e de processos de mediação está envolvida com assuntos que nunca estão previstos numa agenda. E então aquilo que acaba por suceder é que somos confrontados com o que que nunca esteve nas nossas cabeças…

Pode apontar exemplos?

O facto de o mediador do processo zimbabweano, Thabo Mbeki na altura, ter-me dito “olha, agora vais ter de fazer uma missão e eu não vou poder estar contigo”.

Eu perguntei qual era essa missão. E ele responde: “Vais ter de levar Robert Mugabe e Morgan Tsvanguirai a jantarem juntos”.

Eu disse que tal encontro seria impossível. Eles não se falam.

E o Presidente Mbeki disse: “Por isso é que és secretário executivo da SADC. Tens de levar esses dois homens a irem sentar-se”.

Eu insisti: Mas eles não se falam. Eles quando abrem a boca para falarem um do outro é só para lançar pedradas um para cima do outro.

O Presidente Mbeki retorquiu: “Exactamente, é por causa disso que é preciso levá-los para uma mesa. Lembrá-los, em primeiro lugar, que eles são zimbabweanos. Em segundo lugar são líderes e dirigentes zimbabweanos. E em terceiro lugar que existe uma grande expectativa e uma grande esperança que, do comportamento e das atitudes que eles tiverem um e para com o outro, o processo zimbabweano poderá ser bem ou mal sucedido”.

Então fui para esse jantar em que entro na sala com Morgan Tsvanguirai, cumprimentámos o Presidente Robert Mugabe. O Presidente leva-nos à sala onde o jantar ia decorrer. Nessa mesa só existiam duas cadeiras. Acabei por puxar a terceira cadeira. E eu disse: “Senhor Presidente, a casa é sua. A minha missão foi trazer esse hóspede para jantar consigo. E vou retirar-me”.

Morgan Tsvanguirai reage e diz: “Não, não e não. Você não se vai embora. Esse jantar tem de ter testemunha”.

Respondi a Tsvanguirai nestes termos: “A ideia não é esse jantar ter testemunha. A ideia é que vocês os dois sejam testemunhas desse vosso jantar. Mais ninguém”.

Depois de uma troca de impressões, durante quinze minutos, os dois acabam por dizer, bom, não temos alternativa, vamos ter de jantar. Morgan Tsvanguirai um dia desses veio me dizer que eu lhe tinha traído por o ter colocado numa situação difícil. Disse: “Tu levaste-me a ir jantar com o Presidente Mugabe e eu estava com algum receio. Até me podiam dar comida envenenada”.

Disse a ele que isso não ia acontecer, seguramente, porque era convidado no State House. E, logicamente, por ser um líder político, e por estar num processo de paz, isso nunca ia acontecer.

E ele recordou-se daquele episódio de ter sido chamboqueado pela Polícia. E afirmou: “Essa imagem circulou pelo mundo. Como é que uma pessoa que mandou fazer isso hoje me convida para jantar?”.

Eu disse: “Olha, essas são as contingências da política. E hoje estavas sentado com o Presidente Mugabe para jantar. O facto de terem quebrado o gelo naquela altura foi muito bom”.

Este é um dos episódios que ficou na minha retina, dentre muitos outros, como a viagem às montanhas de Kivu, com o falecido Presidente Masire, em que caminhámos a pé, debaixo da chuva, cerca de três horas para irmos ter com Bosko Tanganda, líder rebelde congolês, porque ele dizia que não havia de sair do seu esconderijo em circunstância alguma. Quando chegámos às proximidades do acampamento eu vi coisas que nunca tinha visto na minha vida. Fiquei traumatizado. São coisas que ficaram para a História e os próprios congoleses vão se encarregar de contar.

PREMISSAS DE INTEGRAÇÃO

ASSENTES EM BASES ERRADAS

Quais foram os desafios que ficaram sem resposta durante os seus dois mandatos na SADC?

Não posso dizer que são desafios que ficaram sem resposta. A SADC tem uma agenda que vem consolidada num programa que se chama Plano Indicativo Estratégico Regional. E esse plano indicativo estabelece objectivos e metas. E as metas que estavam estabelecidas eram, primeiro, manutenção da paz e estabilidade, segundo o lançamento de uma zona de comércio livre em 2008, terceiro em 2010 caminhar para uma união aduaneira, quarto em 2015 ter uma união monetária e finalmente em 2018 assegurar a moeda única.  

Destes objectivos que a SADC estabeleceu para si própria apenas podemos testemunhar o lançamento da zona de comércio livre em 2008. A questão que se põe é porque é que os outros objectivos não foram alcançados. E mesmo estes que foram alcançados, manda a verdade dizer que na altura três países, Angola, República Democrática do Congo e o Malawi, por razões diferentes, pediram para poderem não serem parte da zona de comércio livre, porque diziam que acabavam de sair de uma situação de conflito e precisavam de tempo para se estruturar, se organizar para participar num processo desta natureza. 

Mas Angola, na realidade, não disse que o seu receio era outro. Que era o receio que os outros países tinham. O de criar-se uma situação em que havíamos de funcionar num cenário de tráfego num só sentido ou seja da África do Sul para os países-membros.

A África do Sul é o gigante da região, é o país mais industrializado da região, e obviamente ia tirar vantagem disso para colocar os seus produtos nos outros mercados. Era o receio que Angola tinha. Mas quando foi da zona de comércio livre tripartida, Angola foi dos primeiros países a aparecer, porque já sentia que além da África do Sul haviam dois ou três outros monstros que podiam criar um contrapeso, como são os casos de Quénia, Nigéria e o Egipto. Isso havia de criar alguma sanidade no processo.

Por que as outras etapas do processo de integração regional não se concretizaram? 

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