A luta contra a toxicodependência exige muita força interior. São dias, meses e anos de abstinência que quando não são seguidos por uma decisão voluntária de se parar, descambam sempre no risco de se cair novamente nas malhas do vício.
Não tinha a noção do abismo em que me estava a meter. Tinha apenas 14 anos. Foi tudo na inocência de querer experimentar emoções diferentes (…), uma passinha aqui, outro cigarrinho ali. Quando dei por mim, a minha melhor companhia era a heroína, contao toxicodependente a quem atribuímos o nome fictício de David.
Tudo começou numa das escolas secundárias da cidade de Maputo onde frequentou o seu ensino médio. Lá fazia parte do grupo mais famoso da escola, composto por adolescentes filhos de gente com poder financeiro. Fumar soruma e outras drogas era um meio de afirmação dentro do grupo de elite.Dinheiro não constituía problema. Eramos tidos como o grupo com mais poder na escola. Gostávamos da adrenalina. Foi neste ambiente que, para além da soruma, tive o primeiro contacto com a heroína, conta David.
Os mais de 20 anos de convivência com a heroína e cocaína, destruíram a sua vida. Manipulou pessoas, desiludiu os seus amigos, traiu a confiança de familiares e chegou até a se assumir como um caso perdido.
Sentado à mesa de uma das lanchonetes num dos jardins da cidade de Maputo, e com as mãos agarradas a um livro sobre a dependência química, David relata os contornos da sua vida quando entrou para este submundo.
Na escola, onde tudo começou, a droga era adquirida numa boca (local de venda), ali perto.
Vendia-se quase tudo. Haxixe, heroína, cocaína entre outras. Comprávamos o que quiséssemos e íamos consumir dentro do recinto escolar, recorda.
O primeiro contacto com a heroína está marcado na sua memória. Foi no ano de 1993. Um amigo disse que trazia algo novo para o grupo. Experimentei, mas não gostei porque vomitei. Hoje percebo que naquele grupo já tinham amigos viciados.
Dois anos depois, volta a experimentar a heroína, mas por via intravenosa. Apanhei um chuto (o efeito) que me pós num estado de excitação total, revela.
Porque a heroína o deixava em estado de sonolência, David conhece os prazeres de outra droga: a cocaína. Diz que é nela que encontra a solução para a sua sonolência. Passa a consumir os dois químicos.
Dinheiro para adquiri-los?…Encontrava na sua mãe. Era em nome do material de apoio escolar, as fichas, que alimentava o vício. Aos poucos os químicos iam tirando o comando que ele tinha de si.
“MINHA MÃE CHEGOU
A LEVAR-ME AO CURANDEIRO”
Aos 17 anos, quando frequentava a 12 classe, o dinheiro de compra das fichas de apoio escolar já não eram suficiente para satisfazer a dose diária. Passou a tirar diferentes artigos caseiros para vender. Minha mãe não se apercebia de nada. Eu sempre arranjava uma maneira de culpar a empregada, uma vez que eu era filho único, conta.
No entanto, a verdade não tardou vir a tona. Quando a minha mãe descobriu, chegou a levar-me ao curandeiro por acreditar que fossem espíritos que me faziam tomar aquela atitude, conta.
David perdeu conta de quantas vezes a família o encaminhou para casa de reabilitação. Tinha alguns meses de paragem, mas uma recaída era suficiente para voltar ao mundo das alucinações.
Em 2001 entro para Remar ( Centro de Reabilitacao de pessoas marginalizadas)onde fico seis meses e volto a sair a ter recaída. Desintoxiquei inúmeras vezes que até já conhecia a dose de medicação. Lembro que uma vez alertei o enfermeiro que me estava a dar uma dose que não era minha, mas sim de um outro paciente,conta.
ALUGUER DE SERINGAS
E VULNERABILIDADE AO HIVContrair doenças constitui o grande risco de saúde a que usuários por via intravenosa estão expostos.
David é exemplo desta realidade. Para além das cicatrizes de agulhas nos braços, a heroína deixou também outra marca na sua saúde: O vírus do HIV. Hoje é seropositivo. Descobriu em 2015 quando ficou gravemente doente. Omundo caiu-me aos pés quando o médico revelou o meu estado. Pensei na minha filha. Pensei em mim. Recordei-me das vezes sem conta que usei seringas não esterilizadas que alugava na boca de venda de drogas onde frequentava, desabafa.
Suspira profundo e continua o relato. O bairro da Mafalala é um dos maiores pontos de venda. Ali compra-se a droga e ao lado aluga-se seringas não esterilizadas para injecção, afirmou.
A TERAPIA NOS NARCOTICOS ANONIMOS
Conhece os narcóticos anónimos (um grupo de apoio à toxico-dependentes, cuja terapia baseia-se no dialogo) em 2013 por meio de um amigo. Frequenta por algum tempo. Entretanto, traído pela ressaca, David volta a cair nas malhas do vício.
Com a descoberta do seu sero-estado, decide voltar a procurar apoio dos narcóticos anónimos. Para mim esta é a melhor terapia pois, lá o envolvimento é voluntário e não coercivo. Ali lutamos 24 horas por dia, esclarece.
Frequenta a terapia dos alcoólicos e narcóticos anónimos e confessa que está a lutar para voltar a ter uma vida normal. Com 41 anos de idade, e mais de 20 mergulhado no mundo da toxicodependência, David mostra-se estar dentro de um mundo de incertezas. Porém, afirma que é pela filha de 15 anos que busca forças para parar com o vício. A sua luta é diária. Cada 24 horas sem contacto com aquelas substancia é uma vitória, afirma.
Abre o livro sobre os alcoólicos anónimos e lê um parágrafo que fala sobre os desafios contra drogas. Explica que a leitura do livro está a ajuda-lo a compreender melhor o seu comportamento e dos familiares.
A heroína afugentou até os seus sonhos de vida. Contudo, de uma coisa ele tem certeza. Quer-me tornar um exemplo para a minha filha. Os filhos têm os pais como referencia. Já não quero ser uma má referência, salienta.
Confessa que para satisfazer o vício magoou e traiu a confiança de muitas pessoas, particularmente da família. Hoje volvidos, mais de 20 anos na toxicodependência, recorda, com amargura, o quão ingénuo era.
Quando comecei a usar as drogas não conhecia os seus malefícios. Não tinha referências de pessoas viciadas que pudessem testemunhar o quanto a droga os destruíra, desabafa David.
Estou limpo por decisão própria
– Pedro, 31 anos de idade
Pedro é pseudónimo de outro dependente químico em recuperação. Está limpo há três meses, ou seja, a três meses que não consome a droga.
A porta de entrada para a dependência química foi o álcool. Eu bebia muito álcool. Não ingeria menos de dez garrafas médias de cerveja, refere.
Em 2010, teve o primeiro contacto com a cocaína por influência de um vizinho.
Era o prenúncio de uma vida de turbulências. Não parei. Comecei a canalizar todas as minhas poupanças para a compra de cocaína. Quando bebesse sentia a necessidade de cheirar, conta.
Pedro chegou a abandonar o seu posto de trabalho para ir consumir a droga. A medida que o tempo passava, a dose aumentava para atingir a satisfação.
Em 2012 perde emprego. Passa a penhorar seus bens e da família. Quando foi descoberto, criou outra artimanha. Mentiu muito e passou a retirar as coisas de casa. Dormia de dia e de noite saía para consumir o pó, desabafa.
Por causa da dependência as drogas e desavenças com a família, Pedro chegou a sair de casa.
Para alimentar o vício, passa a procurar o dinheiro por via desonesta, roubando nos supermercados e extorquindo pessoas.
Manipulei tanto a minha família. Até a polícia eu manipulei para arranjar dinheiro para as drogas. Sentia que tinha o mundo aos meus pés. Eu achava que tinha todo o poder comigo, explica.
SOLIDÃO E CANSAÇO DO VÍCIO
Passados três anos, e isolado pela família, Pedro começa a ganhar consciência da quão a cocaína havia destruído a sua vida. Comecei a cair na real quando a minha irmã, que era a única base que eu tinha e com quem mais me abria, decidiu afastar-se de mim, revela.
Para afastar-se da droga, Pedro frequentou mais de quatro igrejas. Umas por vontade própria e outras por persuasão de amigos e familiares. Apercebe-se que sozinho não conseguia sair do vício. Ficava dois dias e voltava a beber echeirar o pó. Meus familiares ajudaram-se a entrar para um retiro espiritual para viciados e lá fiquei três meses. Aquele foi o princípio da minha luta, sublinha.
Depois de sair do retiro espiritual, o nosso entrevistado procurou os alcoólicos anónimos onde se encontra até hoje.
Quando entrei para os alcoólicos anónimos senti a diferença em relação aos outros locais que recorri. Estou por vontade e decisão própria. Doutras vezes sentia que estava a ser pressionado a fazer tudo aquilo, afirma.
Depois de anos de dependência, Pedro ganhou nova vida. Hoje a cocaína faz parte do seu passado. Contudo, afirma que, ainda assim, não subestima o poder que as drogas têm sobre os dependentes. Hoje o único sentimento que tem com relação aquele pó é de repugnância.A sua primeira casa hoje é nos alcoólicos anónimos. Apesar de a droga ainda teimar em assombrar-lhe afirma: Estou livre e em paz comigo mesmo. Esta liberdade não tem preço. A família ainda não acredita muito em mim, mas o tempo vai ajudar a convencê-la, assim Pedro encerra a conversa com o domingo.
Chocada com a perda de um amigo
-Clarice, 30 anos
O suicídio praticado pelo amigo, também usuário de cocaína, foi um dos choques que fez com que a jovem, a quem passamos a chamar de Clarice, decidisse parar de consumir droga.
Meu amigo sempre quis matar-se. É o preço da depressão pós-ressaca. Várias vezes tentou matar-se na minha casa. Naquele dia, quando cheguei ao seu apartamento a Polícia já estava lá a retirar o corpo que estava suspenso, conta.
Clarice nunca foi internada num centro de reabilitação. Para ela, o facto de nunca ter sido vítima de estigma a ajudou a sair do vício com menos sofrimento.
Na sua família, ninguém sabia que usava drogas. Quando as pessoas nos pressionam é difícil sair do vício porque não fazemos por nós. Eu fi-lo por mim. Despertei sozinha. Para começar tive que me afastar dos amigos usuários, conta.
A abstinência da cocaína custou-lhe a separação do seu marido, também usuário. Conversei com ele e fi-lo entender que pretendia parar. Ele pediu-me que o deixasse usar e prometeu ficar longe. Deixei que ele consumisse, afirma.
Duas semanas, vendo o marido a drogar-se, cometeu um lapso (retorno breve, muitas das vezes uma só vez). No dia seguinte, estava deprimida e lhe disse que não conseguiria ficar com ele, pois voltaria a usar droga.
Aquela foi a última vez. Há cinco anos que Clarice parou de cheirar o pó. Passo seguinte foi a luta pelo abandono do álcool. Já la vão dois anos de abstinência.
Recua no tempo para narrar o início de tudo. A sua entrada para o mundo da dependência foi aos 15 anos de idade. Foi movida pelo interesse de experimentar e pelo desafio pessoal de manter o controlo da substancia.
Já havia lido um livro e visto filmes que falavam sobre a soruma(cannabis sativa). Este conhecimento em algum momento me despertou o interesse de experimentar o efeito dela, conta.
Nessa altura frequentava o ensino secundário numa escola privada da cidade de Maputo. Recebeu a substancia psicoactiva por um amigo da mesma idade. Nesse dia, fumamos um charro de soruma. A partir daí eu adorei e passei a fumar. Íamos comprar numa das ruínas que existia na Avenida 24 de Julho, revela.
Depois de oito anos a consumir a erva, decidiu parar. Passaram-se quatro anos.
A sua relação com os seus pais não era das melhores. Ela sempre sentiu uma obrigação de não os causar dor.
A partir do momento que a relação azedou, optou por vida independente. Meu pai era uma pessoa extremamente difícil de lidar. Era muito agressivo e violento. Quando fui estudar para Africa de Sul, minha mãe se estava a recuperar de uma depressão e por isso era fria e distante. Não se sentia amada por eles, lembraClarice.
Este sentimento contribuiu para que ela procurasse o bem- estar em outros ambientes. Apesar da má relação com os seus pais, alega que aquela não foi a principal causa que a fez entrar para as drogas.Na realidade eu sentia uma vontade grande de viver de outra maneira. Não tinha vontade de estudar, apenas de sair e me divertir com os meus amigos, explica a jovem.
Foi aos 21 anos, quando frequentava uma universidade sul-africana, que Claricecheirou a cocaína. Lá os jovens usavam cocaína com muita naturalidade aparentemente inofensiva.
Passou a consumir não só cocaína. Experimentou também heroína, ácido, ecstasy e craque.
Apaixonada pela leitura, sempre procurou desmistificar o que para ela parecia um enigma. Li muito sobre alucinação e sobre as plantas mágicas da América Latina e sempre tive a curiosidade de experimentar essas plantas. Falo dos cogumelos, do peiote.
Foram dois anos e meio envolvida nas drogas. A cocaína era a sua substancia predilecta.
Foi no segundo ano de consumo que sentiu que já não tinha total controlo sobre si. Casei-me e fui viver a dois. Foi nessa altura que percebi que as coisas não estavam bem. Quando não usasse a coca eu caia em depressão. Tinha vontade de morrer, conta.
Do mundo das drogas ao prazer pelo desporto
Hoje, Clarice trocou o prazer das drogas pelo prazer do desporto. Faz dança, ciclismo, natação, ioga e aeróbica. Iniciou com exercícios físicos acidentalmente.
O endereço das discotecas, bares, festas passou a ser substituído pelo do ginásio. Entretanto, no princípio trabalhou duro. Chegou a ir ao médico psiquiatra, porque estava depressiva.
O médico recomendou a prática de exercício para estimular o seu cérebro a produzir dopamina (a substancia que proporciona o prazer) que antes era produzida com maior intensidade devido ao uso da cocaína.
Por outras palavras, o seu cérebro ainda não se havia ajustado a nova realidade da abstinência. No desporto descobri a nova felicidade, rematou.
Para Clarice, a luta será por toda a vida. Ela entende que o facto de saber que está livre pode torná-la mais vulnerável.
Toxicodependência ‘e doença cronica– Eugénia Teodoro, psicóloga clínica
Para psicóloga Eugenia Teodoro, está a faltar conhecimento, nos familiares e até nos próprios usuários, de que a toxicodependência é uma doença crónica, o que significa que, uma vez diagnosticada, pode ser tratada, a semelhança de outras doenças como as diabetes, a hipertensão arterial e outras.
Segundo a nossa entrevistada, o que acontece é que no processo de abstinência, uma das etapas de recuperação, o paciente vai evitando ter uma recaída.
Explicou que a recaída é comum no processo de tratamento, devendo o dependente químico saber que o esforço que fez no inicio, para estar livre da substancia, fará por toda a vida.
A psicóloga clinica sublinha que este é um dos esclarecimentos que os dependentes químicos ainda não têm, pois eles olham para o tratamento como algo pontual.
De acordo com a psicóloga clínica, uma das condições para o início do tratamento é que este venha acompanhado por alguém da família, para que este receba informação relevante a respeito do comportamento do doente nas diferentes fases da recuperação.
O que muitas vezes acontece é que, por falta de conhecimento, as famílias encaram a recaída como algo propositado ou fruto da falta de vontade do usuário de largar o vício.
PARA TRATAMENTO OU DESINTOXICACAO
Maputo com maior registo de pacientes
A cidade de Maputo destaca-se pelo maior registo de usuários de droga que recorrem aos serviços de Saúde ao nível do país.
De acordo com os dados do Programa de Saúde Mental, do Ministério da Saúde, depois do álcool, a associação de múltiplas substâncias psicoativas constitui o segundo tipo de consumo mais comum. Enquanto isso, a cannabis sativa revela-se a terceira substancia mais usada.
O Relatório Anual do Programa de Saúde Mental de 2015 revela que em 2014 foram atendidas 2 334 pacientes usuários de múltiplas substâncias psicoativas, contra 2044 pacientes atendidos em 2015.
Relativamente a cannabis sativa, em 2014 foram registadas nas consultas das unidades sanitárias 380 pacientes usuários. No ano seguinte (2015) este número quase duplicou, tendo passado para 735 pacientes registados.
Em relação ao género, por razões de vária ordem os homens continuam a ser os que mais recorrem as unidades sanitárias para tratamento ou desintoxicação.
Texto de Luísa Jorge